A Single Kiss ano X:
The Chestnut Tree Café
"Under the spreading chestnut tree, I sold you and you sold me"
-- George Orwell - "1984"

Após anos sob interdição, o Chestnut Tree Café agora se dedica a registrar as Crônicas de um Escravo de Colarinho Branco.

Música:
R.E.M.
Sisters of Mercy
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Leonard Cohen

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Metallica
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Rage Against the Machine
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Eternal Sunshine of the Spotless Mind
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The Wall
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F. Dostoievski
J.R.R. Tolkien
Leonard Cohen
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Lendo no momento:
F. Dostoievski - Um Jogador

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Dostoievski I, II, III
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The Inner Party:
Após vários julgamentos públicos, há escassez de membros a indicar

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Quem controla o passado controla o futuro:




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terça-feira, agosto 31, 2004

 

Ainda Freud e Dostoievski -- e Tarantino

Voltando ao artigo de Freud sobre Dostoievski, um pouco mais adiante Freud escreve sobre os traços sádicos de personalidade de Dostoievski, e ao apontar indícios disso faz um comentário curioso:

"...sua personalidade reteve traços sádicos em abundância, os quais se mostram em sua irritabilidade, em seu amor de atormentar e em sua intolerância (...) aparecendo também na manera pela qual, como autor, ele trata seus leitores." (grifo meu)

Não sei ao certo que maneira é essa à qual Freud se refere. Tirando a decepção já comentada (e não é a isso que Freud está se referindo nessa altura), não sofri maus tratos do autor ao ler "Crime e Castigo", pelo contrário, é uma leitura bastante prazeirosa e instigante. Mas à medida que fui avançando na leitura de "Os Irmãos Karamazov" (que é, afinal, o livro em discussão), acho que ficou claro a o que Freud está se referindo.

Já desde as primeiras páginas do livro nota-se uma certa falta de de ritmo, como que custando a pegar no tranco, em grande contraste com o outro livro, parecendo ser outro autor de estilo totalmente diverso. Longe de ser uma leitura envolvente, um page turner, esse é um daqueles livros que não dão vontade de se ler mais de 5 páginas por vez, e da próxima vez você precisa voltar umas 2 páginas para retomar o que está acontecendo. Ele começa um assunto, e como um aparte a ele escreve dois capítulos, para depois retomá-lo, apresenta uma situação fora de contexto e diz que há um outro ocorrido que a explicaria, mas não convém contar no momento, e por aí vai. Não é uma mera questão de não haver linearidade temporal, isso é dispensável, mas não há sequer linearidade temática ou lógica alguma, quando ele apresenta um assunto, e finalmente vai engatar nele, ele prontamente salta para outro, parecendo deliberadamente evitar que a história tenha um encaminhamento "legível". Tudo isso sendo o mais esmiuçado possível nos apartes mais triviais, e frugal e suscinto com qualquer coisa relativa à história em si. A imagem que vem ao ler o livro é daquelas cenas de filmes de ação nas quais motorista dirige um carro com um inimigo agarrado no teto, e vai acelerando e freiando, dando cavalos de pau e fazendo curvas fechadas, raspando em prédios e passando por matagais para tentar se livrar do outro, onde Dostoievski é o motorista e o leitor é o carona indesejado.

No próprio prólogo, no qual o autor discute sobre a relevância desse livro e de seu desdobramento em dois extensos tomos, ele questiona a relevância de qualquer pessoa ler o livro, meio que avisando os incautos, para a partir daí testar a determinação do leitor, escrevendo da maneira mais obtusa possível só de sacanagem, enquanto fica rindo da cara do leitor que tenta acompanhar o despejo de personagens e situações indefinidos na sua cabeça. Esse livro foi escrito quando Dostoievski já estava relativamente estabelecido e podia brincar como quisesse com a escrita, não precisando se preocupar com trivialidades como conquistar os leitores; pelo contrário, ele parece querer repudiá-los, "Você quer um livro? Então toma!".

O engraçado é que não é uma questão dele ser um escritor denso ou pesado, cujo estilo é esse mesmo, ame-o ou deixe-o; dá pra perceber que rola um empenho deliberado em se fazer assim propositalmente, acho que aí que estão os "maus-tratos" pelos quais ele é acusado por Freud.

* * *

Semana passada eu vi "Kill Bill Vol.2", e como tanto tempo depois do Vol.1 e eu ainda não comentei, parece justo que eu comente o Vol.2 tanto tempo antes. Bem, antes da estréia oficial no Brasil, já que qualquer interessado que tenha banda larga ou ande na rua já baixou ou comprou pirata de camelô, Deus e o mundo já viram. Idéia de girico das distribuidoras adiar tanto o lançamento do filme, só fazem perder bilheteria e dar dinheiro pra pirataria, mas enfim.

Antes, uma recapitulada sumária sobre o "Vol.1": pessoas entusiasmadas clamaram que este era "o melhor filme do ano", histeria de massa típica, manipulada por mídia. Duplamente estúpido: você não tem como, em Maio, afirmar que qualquer filme seja o melhor do ano, e algumas dessas pessoas disseram isso antes de ver o filme, ou seja, uma opinião pré-definida, sem nenhum compromisso de julgamento real. De modo geral as pessoas têm reações polarizadas em relação ao Tarantino: ou ele é um medíocre diretor que apela pra extremos gráficos, ou um virtuoso e revolucionário artista que desconstrói a sétima arte e a eleva a patamares sem igual. É claro que os dois extremos têm uma partícula de verdade, mas estão errados.

É curioso ressaltar que algumas das pessoas que clamaram que "Kill Bill vol.1" seria o melhor filme do ano antes de vê-lo inverteram essa opinião após vê-lo, dizendo que era execrável e uma perda de tempo. Claro, com expectativas tão infladas e exageradas, não tinha como se satisfazerem, então mantiveram o exagero, só invertendo a polaridade. O Vol.1 é um filme "legal", "divertido", assim mesmo, sem grandes superlativos. O Tarantino é um cara genial no seu campo, ele entende da linguagem cinematográfica e sabe fazer malabarismos metalingüísticos como poucos, mas as pessoas não entenderam que "Kill Bill" é uma brincadeira, apesar de Tarantino ter deixado isso claro desde que começou a se falar sobre o filme. O filme nada mais é, e nada mais se propõe a ser, do que uma homenagem avacalhada a todos os clichês dos filmes de kung-fu, samurais e faroeste que o Tarantino se amarra, ou seja, não é para ser levado a sério. Daí que os intelectualóides e cinéfilos de plantão tenham saído putos, pois não entenderam a piada. O Tarantino é um cara foda, então até uma brincadeira descompromissada dele fica foda, mas ela permanece apenas isso, uma brincadeira descompromissada. Eu ri e me diverti à beça vendo o filme, apreciei bizarrices como duelos de samurai com trilha sonora de faroeste e amputações com chuveirinhos absurdos de sangue agüado, e tá tudo certo.

O único problema, a meu ver, que incomoda um pouco no Vol.1 e esgota a paciência no Vol.2 é a falta de limite. Tarantino provavelmente já tem lá o seu pézinho na onipotência, uma falta de castração que lhe desse limites, e a situação real em que passou a se encontrar corrobora e reforça isso. Ele é um dos roteiristas e diretores mais cobiçados em Hollywood, e como raramente lança algo, deixa o mercado ávido por qualquer trabalho seu. Isso o deixa na posição confortável de poder fazer o que quiser irrestritamente, não há estúdio ou produtor que não vá ceder a qualquer capricho dele. O resultado final disso, como disse um amigo meu, é que Kill Bill precisava desesperadamente de um co-diretor, alguém que desse um pé no chão pro Tarantino, para dizer "Menos, menos" pra ele. Faltou corte ali, tanto simbolicamente quanto concretamente, o corte da edição de cenas. Acho que rolou uma errada na dose, por exemplo nos papos furados: já que eles fizeram tanta graça em "Pulp Fiction", como o célebre diálogo do Royale with Cheese, vamos extendê-los de maneira absurda em Kill Bill, vamos deixar a Uma Thurman cinco minutos olhando pro dedão do pé, e por aí vai. Os dois filmes poderia ter, cada um, uma meia hora enxugada sem perda alguma: não se trataria de compactar o filme e apertar seu conteúdo em uma duração menor, seria simplesmente não esticar o conteúdo ao longo de uma duração desnecessária.

Embora o Vol.2 tenha alguns pontos fortes, eles são mais conceituais, o saldo total sai negativo, com as poucas cenas realmente interessantes não valendo o todo, por esse enfado que a inflação do filme gera. É interessante, por exemplo, como ele continua brincando com a meta-linguística e com as expectativas do público. Ele já havia avisado que o Vol.2 seria substancialmente diferente do primeiro: onde um seria sobre a exarcebação e banalização da violência, o outro não teria grandes cenas de ação. Mas ainda assim é engraçado reparar como em diversas cenas ele prepara todo o cenário e ambiente para mais uma longa cena de duelo só para, todas as vezes, encerrar a luta quase que antes mesmo dela ter começado, como que rindo das nossas caras e dizendo "não, não, enganei vocês, eu avisei que vocês não vieram aqui pra ver luta".

Bom, acho que o salto de Dostoievski para Tarantino fica bastante claro: ambos aparentam ter a mesma postura com seus respectivos leitores e espectadores! O mesmo mal-trato debochado, a mesma habilidade no manuseio técnico de seu canal para despistar e frustrar o público, o mesmo exagero onipotente do artista já estabelecido que diz que "aqui mando eu, cala a boca e leia/assista, se não gostar a porta é ali". É um salto bastante grande, correlacionar um clássico escritor existencialista russo do séc.XIX com um diretor de cinema Hollywoodiano espertalhão e pós-moderno, mas a sensação perante os dois é a mesma. Acho que isso só prova como o ser humano é muito menos variado do que se pensa em primeira instância. Plus ça change, plus c'est la même chose", afinal de contas, "The Song Remains the Same".

Continuando as similaridades entre eles: em uma carta de Freud em resposta a um correspondente seu que comentara sobre "Dostoievski e o Parricídio", Freud admite que

"Você tem razão em desconfiar de que, a despeito de toda minha admiração pela intensidade e preeminência de Dostoievski, de fato não gosto dele. Isso se deve a que minha paciência com as naturezas patológicas está exaurida na análise; na arte e na vida, não as tolero. Trata-se de traços de caráter que me são pessoais e não obrigam a outros."


É, realmente há bastante o que se comparar entre Dostoievski e Tarantino.


posted by Manhaes at 3:42 PM
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sexta-feira, agosto 27, 2004

 

Drops

Uma notícia na televisão essa semana anunciou o desenvolvimento de combustível eficaz a partir de óleo de mamona. Como assim, gente, essa notícia é nova? Essa talvez seja a notícia mais atrasada que eu já vi na vida! Há coisa de 15 anos atrás isso já havia sido anunciado na Superinteressante (embora minha noção de tempo seja péssima, eu parei de assinar a revista lá pra 92, então foi antes disso), e depois não se falou mais nisso.

Claro, um combustível eficaz, de produção barata e matéria-prima de custo desprezível -- uma planta que dá que nem praga em qualquer terreno baldio -- é claro que o mercado não vai aceitar isso. Além de mandar a hegemonia dos petro-dólares pro quinto dos infernos, um produto barato assim geraria uma queda dos preços que não interessa a nenhum dos 500 atravessadores envolvidos, inclusive o próprio governo. E não precisamos sequer entrar no mérito de magnatas árabes e norte-americanos: esse avanço tornaria desnecessária a própria Petrobrás, menina dos olhos de nosso país.

Há 15 anos atrás morreu o assunto, dificilmente agora será diferente. Se não der pra boicotar ou inviabilizar o projeto com algum trâmite legal, alguma indústria petro-química compra a patente pra engavetar e nunca mais se falar nisso, como já aconteceu com várias invenções que ameaçavam quebrar monopólios.

* * *

Outra notícia, essa no jornal, falava do Sr. Fulano que conseguiu ser eleito para presidente da FIESP. O que me chamou de cara a atenção foi a notícia informar que ele era "de oposição, apoiado pelo governo Lula". Ok, eu sou um alienado e desinformado convicto, raramente tirando a cabeça do buraco para me informar do que está se passando, mas até eu vi algo de errado aí: oposição apoiada pelo governo, não tem uma ligeira idiossincrasia aí não???

Até daria pra se dizer que eles estão se referindo a forças de situação e oposição dentro da FIESP, mas o restante da matéria reforçava a idéia, com o PT comemorando ter conseguido, após x anos, ter colocado um candidato de oposição lá. Sim, o PT fez o esforço como oposição ao longo de todo esse tempo, mas conseguiu como situação, e parece não ter atentado para essa pequena mudança!

Não há nada de surpreendente nisso, já foi amplamente reparado e comentado como o PT se encontra na situação com atitudes de oposição. Algo deveras esquizofrênico, se você parar para pensar, e a analogia se reforça quando testemunhamos a "cisão egóica" do PT, que fica na guerra do "eu contra eu mesmo". Eu reparei nessa notícia mais como um follow up, um dado que nos diz que a ficha ainda não caiu para o PT de que eles são agora situação; não é à toa que cada vez mais esse governo se assemelha a uma galinha degolada.

* * *

Outra, essa manchete de primeira página do Globo: "Vela, o esporte nacional". É fácil deduzir que eu sou uma daquelas pessoas que se revoltam com todo o efeito Pão & Circo que ocorre com Copa e Olimpíadas, mas desde moleque tendo convivido com isso, a gente aprende a acatar isso como uma circunstancial inevitabilidade social. Há também a revolta adicional de o Brasil como um todo (todo mesmo, governos, empresários e principalmente o povo) cagar totalmente para o apoio aos esportes pra subitamente, uns meses antes da Olimpíada, lembrar que eles existem. Daí, no melhor estilo "Deus dará" desse caráter oral coletivo que espera que tudo venha até si do nada, o povo torce pelas medalhas, pela "nossa" vitória. Não, quem vence ali é a meia dúzia de gatos pingados diretamente envolvidos, com pouco apoio e recursos. O país os ignora durante 3 anos e meio, se eles vencem é uma extrema cara de pau coletiva dizer que a vitória é do país: a vitória é deles, dos indivíduos das equipes.

Agora, eu fico pensando como os jornalistas, na primeira aula da faculdade de comunicação, devem receber o dogma "quem não tem cão, caça com gato: force a barra o máximo possível para se obter a manchete desejada. Quando não houver a notícia que você quer, invente-a".

Na boa, vela esporte nacional é um pouco demais, né? Se fosse judô, vôlei, corrida, até vai, agora, forçar a barra de que vela, um esporte de elite, praticado por uma minoria com seus barcos de milhares de reais, é o esporte nacional passou da conta, né? É de uma irrealidade festiva extrema essa alegação, mais pão e circo impossível: vamos lançar uma manchete bem emotiva e populesca, e foda-se que não faz o menor sentido, o que importa é que o povo comemore "o ouro é nosso!", sem saber sequer o que está comemorando. E o caso específico da vela é uma variação da questão acima, mas com o mesmo efeito: ao invés de pessoas que ralam sem recursos para conseguir treinar, temos pessoas que ralam com o próprio recurso, que como têm dinheiro se bancam por si só, da mesma forma não havendo mérito nacional algum aí.

* * *

Dois encontros curiosos ontem em ônibus:
-Pela manhã, pegando o 570 para ir pro trabalho, no que eu entro no ônibus o motorista aponta na minha direção e diz algo do gênero "Sisters of Mercy, boa pra caramba essa banda!". Com o cérebro ainda meio anuviado de sono, não processei a informação, olhei para trás achando que ele estava falando alguma coisa com o fiscal na calçada, e como ele ficou me olhando eu tive que perguntar empaspalhadamente "Hã?", e só quando ele repetiu que eu entendi que ele estava apontando para minha camisa. Dei aquele sorriso de "a gente compartilha algo em comum", ainda meio empaspalhado pelos neurotransmissores preguiçosos, e passei pela roleta.

Nada demais, mas é sempre bacana quando a gente faz esses contatos fugidios por aí, uma quebra momentânea do anonimato cotidiano, um reconhecimento quase que marginal de que você e o outro subitamente são menos do que completos estranhos, vinculados por um gosto específico e relativamente raro. Ainda mais em uma fonte tão inusitada como um motorista de ônibus, em geral das últimas pessoas que se esperaria conhecer e gostar de SoM. Faz a gente andar por aí olhando curioso para as pessoas, se perguntando quantas e quais dentre elas não carregam esses pequenos "segredos" em comum.

-O outro foi menos inusitado. à noite, agora no 571, esbarrei mais uma vez com aquele sanfoneiro que todo mundo que circula com frequência de ônibus pela Zona Sul já deve ter visto. O cara toca muito bem -- ou ao menos me parece, usando a riqueza de sons do acordeon para levar simultaneamente batida, base e linha vocal de uma música -- mas pelo que eu já vi o repertório não foge muito do roteiro "Aquarela do Brasil", "La Bamba", medleys a lá Jive Bunny, e umas 2 ou 3 dos Beatles. Ou seja, só as águas seguras de rocks antigos e similares, para chover no molhado e tentar agradar gregos e troianos. Daí a surpresa, que não teve como não sorrir ao escutar, foi ele levar "I Will Survive", que não deixa de ser chover no molhado, mas ainda assim uma quebra bem contrastante na sequência. e muito bem levada, marcando batida, solos de teclado, vocal, um luxo! Embora eu nunca dê dinheiro na rua, ele me quebrou me fazendo sorrir, então era justo e eu tive que dar um trocado.

* * *

Há alguns meses atrás, um médico/acupunturista bem veterano de profissão me disse algo que um professor havia lhe dito uma vez: "O que eu trato é ser humano; corpo e alma tudo junto. Corpo sem alma é cadáver, alma sem corpo é assombração". Essa frase merece ser emoldurada e distribuída por todos os lugares que trabalham, m qualquer abordagem, linha ou especificidade, com saúde. Eu achei simplesmente genial pela clareza de visão dela, de um pragmatismo quase bronco em sua simplicidade, mas de uma concisão que encerra em si um brilhantismo que desarma qualquer defesa de uma das parcialidades, seja misticismo ou organicismo. Uma pérola dessas é tão auto-suficiente que dispensa qualquer elaboração adicional: ela já diz tudo, qualquer complemento é mera legenda.

* * *

Esses dias eu andei lembrando de "Alagados", e falar acima sobre a Olimpíada me lembrou novamente. Desde moleque em festinhas de criança eu sempre me empolgava cantando "alagados, tristão!", eu não tinha ainda a capacidade de saber do que a música falava, mas algum registro rudimentar me dizia que ela estava falando de algo importante; a força de sua letra e melodia é suficiente para transparecer mesmo onde ainda não há capacidade cognitiva formal para entendê-la, naquela aguçada mas inarticulada percepção que temos quando criança, e depois desaprendemos. Não sei precisar até que ponto, mas sem dúvida os versos "A arte de viver da fé / só não se sabe fé em quê" tiveram um impacto forte naquele moleque, certamente está naquele rol de músicas e influências que foram sendo involuntariamente escolhidos como parâmetros de enxergar o mundo. Daí, é uma experiência bastante frutífera quando se cruza esse registro rudimentar, que ficou guardado e empoeirado, com o entendimento intelectual de adulto. Você pára pra pensar nqueles versos, que durante tantos anos você cantou automaticamente, e em um grande momento de Eureka você percebe o que estava ali o tempo todo.

"Todo dia
O sol da manhã vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo quem já não queria
Palafitas, trapiches, farrapos
Filhos da mesma agonia

E a cidade
Que tem braços abertos num cartão-postal
Com os punhos fechados da vida real
Lhes nega oportunidades
Mostra a face dura do mal

Alagados, Trenchtown, Favela da Maré
A esperança não vem do mar
Nem das antenas de tevê
A arte é de viver da fé
Só não se sabe fé em quê"


posted by Manhaes at 4:15 PM
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terça-feira, agosto 24, 2004

 

De volta a Dostoievski

Na barra aí ao lado eu digo que no momento estou lendo "Análise do Caráter", mas é mentira. Na verdade eu estou lendo mesmo é um punhado de textos para faculdade e estágio, e sempre que possível contrabandeando no meio deles doses pingadas de "Irmãos Karamazov".

Há quase exatamente um ano atrás (post de 24 de agosto de 2003), eu comentei sobre Dostoievski e minha então recém-concluída leitura de "Crime e Castigo". Nesse post eu tentei falar de alguma coisa neste livro que não bateu para mim, algum incômodo que eu deixei mal-definido não só por não saber especificá-lo, mas -- percebi de lá pra cá -- por não ousar especificá-lo. Porque, por mais arrogante que eu possa ser, eu tenho ao menos um pingo de noção que me impede de sair desqualificando alguém que é consensualmente considerado um dos maiores escritores da Modernidade sem ter muita certeza do que estou falando.

A verdade é que Dostoievski é decepcionante, onde decepção pode ser tomado com um duplo sentido bilingüe: decepção enquanto desapontamento e enquanto deception, enganação. Me entendam bem, ele é magistral, quanto mais eu leio dele mais eu concordo que ele é um dos grandes definidores de todo o clima e modo de ver o mundo (Zeitgeist e Weltenschauung, para tirar onda) dos últimos cento e poucos anos. Mas justamente por isso que ele decepciona: ele coloca o leitor diante de uma maneira nova de ver a sociedade, nos dá a sensação de estar testemunhando a superação dos modelos vigentes, com seus protagonistas que sofrem resolutamente as dores de transgredí-los e crescer para além deles, mas na hora do "pulo do gato" desconversa e diz que a realização máxima está na penitência abjeta a Deus. Porra, o homem que enuncia novos patamares de crescimento e realização humana para além do patriarcado religioso, que prenuncia a vontade de potência e a morte de Deus de Nietzsche, que esboça a possibilidade do homem se fazer livre de sua auto-imposta prisão, acaba por concluir que toda a verdade vem de Deus e que só se encontra a felicidade em Sua moral??? Não é uma decepção? É de nos deixar à beira das lágrimas testemunhar esse podia-ser-mas-não-foi, esse coito interrompido social e espiritual! Um desserviço, por nos tornar ainda mais conscientes da miséria humana sem contudo oferecer nenhuma alternativa válida.

Essa percepção de qual era o tal "incômodo" veio se formando gradualmente, ficou lá no canto da mente sendo processada aos poucos, e só se concretizou há poucos dias, com uma pequena sincronicidade. Em meio, como eu disse no início, aos primeiros capítulos de "Os Irmãos Karamazov" e textos avulsos de faculdade, coincidiu que entre as leituras indicadas para este semestre eu tenho o artigo de Freud "Dostoievski e o Parricídio" (que eu nunca tinha reparado que existia) para ler. É claro que eu adiantei a leitura desse texto para ver o que o vienense tarado tinha a dizer do russo angustiado, ainda mais sendo "Karamazov" A obra máxima de Dostoievski sobre o parricídio.

Esse é um artigo no qual Freud hipotetiza que, simplificadamente, os ataques epilépticos do escritor poderiam na verdade ser manifestações histéricas de seu caráter sádico. Logo na primeira página do artigo, com Freud comentando sobre os ângulos pelos quais se pode olhar Dostoievski, ele fala sobre "Dostoievski, o moralista", e condena a postura de "santo do pau oco" do escritor, que após ter pecado pra todos os lados em sua vida, sai pondo banca de moralista. Freud prossegue:

"Faz-nos lembrar dos bárbaros das grandes migrações, que matavam e faziam penitência por matarem, até que a penitência se transformou numa técnica real para permitir que o homicídio fosse cometido. Tampouco o resultado final das batalhas morais de Dostoievski foi muito glorioso. Depois das mais violentas lutas para reconciliar as exigências instintuais do indivíduo com as reinvidicações da comunidade, veio a cair na posição retrógrada de submissão à autoridade temporal e à espiritual, de veneração pelo czar e pelo Deus dos cristãos, e de um estrito nacionalismo russo -- posição a que mentes inferiores chegaram com menor esforço. Esse é o ponto fraco dessa grande personalidade. Dostoievski jogou fora a oportunidade de se tornar mestre e libertador da humanidade e se uniu a seus carcereiros. O futuro da civilização humana pouco terá por que lhe agradecer. Parece provável que sua neurose o tenha condenado a esse fracasso. A grandeza de sua inteligência e a intensidade de seu amor pela humanidade poderiam ter-lhe aberto outro caminho de vida, um caminho apostólico."


Tendo lido esse trecho específico, ficou fácil fechar a Gestalt e conseguir dar contornos específicos a essa coisa que não estava batendo (a rigor, eu não tenho nem como provar que não tenha simplesmente pensado o que escrevi acima apenas após ter lido o artigo de Freud; como digo costumeiramente, acreditem na minha palavra). Não só foi um daqueles casos em que as palavras de outros ajudam a dar forma a algum sentimento que não estamos conseguindo articular, como, mais importante, a queixa de Freud legitimou a minha. Como eu disse, eu me acovardei de criticar Dostoievski; tendo visto que mais "alguém" também se incomodara com a mesma decepção que eu, me senti amparado em me queixar também. Isso não deixa de ser, em parte, seguir a onda do mais forte; não muito nobre, mas humano.


posted by Manhaes at 3:31 PM
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segunda-feira, agosto 23, 2004

 

O Joaquim Ferreira dos Santos entrou já faz algum tempo (minha noção inexistente de tempo me impede de chutar quantos meses, ou se já tem mais de um ano) com sua coluna no lugar da do falecido Mauro Rasi. Embora eu não soubesse, e na verdade ainda não saiba, quem é e de onde veio esse Joaquim, eu já tinha tomado o hábito de conferir essa metade superior da última página do Segundo Caderno do Globo para ler, além do finado, Daprieve, Xexéo, Bloch e Agamemnon -- porém passando longe da Rónai -- então fui ver qual era a desse recém-chegado.

Não lembro qual foi o assunto da primeira coluna dele que eu li (nem se foi a primeira dele), mas sei que, mais do que o assunto, o estilo de prosa dele me chamou muito a atenção. A escrita dele tem essa qualidade técnica que oscila naquele limite tênue entre o fluir poético e o truncado erudito. Mas na verdade não é erudição, ao menos não no sentido escolástico, é só impressão: ele brinca com com um linguajar prosaico e um atravancamento coloquial (não o nosso colóquio, o de outras praças e tempos) de expressões e interjeições que nos lembra de "Grandes Sertões: Veredas" -- e de fato, mais adiante nesse primeiro contato ele citava Guimarães Rosa.

(Não que eu tenha conseguido ler "Grandes Sertões": após um mês de leitura tortuosa e esforçada, eu me toquei que mal tinha chegado na página 20, então reconheci minha insuficiência e prontamente arreguei pra ele, admitindo estar diante de algo muito bom, mas ainda além da minha capacidade de desfrutar. Mas isso é literalmente só um parênteses.)

Pessoalmente, me agradou na escrita dele algo particularmente raro na mídia, um escritor sem medo de fazer períodos compostos longos, cheios de apostos e orações subordinadas, tirando nosso fôlego com suas voltas sem nunca nos perder nelas -- ou seja, mostrando habilidade técnica sem com isso alienar os leitores em um elitismo cultural. Esse estilo quebra com aquela máxima simplória da escrita de que se deve sempre optar por períodos curtos com poucas e breves orações, que nada mais é do que uma acomodada segurança para quem não tem nem quer ter intimidade com a escrita, dando um céu baixo para quem a segue. Óbvio, ocorre o efeito "quero ser assim quando crescer", além de uma certa legitimação ao ver alguém reconhecido fazendo isso. Se os leitores na maioria (de blog em particular) sofrem de déficit de atenção e não conseguem ler uma frase de mais de duas linhas, ou um texto de mais de dois parágrafos, isso é empobrecimento cultural deles, seria errado "baixar o nível" para conquistar ou manter sua assiduidade -- popularizar a escrita não quer dizer empobrecê-la nem rebaixá-la, não queremos uma população de analfabetos funcionais à guisa de literatos.

Mas eu me desviei, eu queria comentar sobre o belo exemplo que é a coluna de hoje desse autor. Tomando um tema como assunto, ele passeia por uma meia-dúzia de outros, indo e voltando com uma fluidez de bailarino, conseguindo sem aparente esforço pincelar sinteticamente a essência de cada um deles, de modo que ele consegue falar de vários assuntos ao mesmo tempo, contrabandeados sem embolação dentro do assunto proposto. O trecho a seguir, por exemplo, não tem em si nada a ver com o assunto da coluna, surge quase como um devaneio dentro de um comentário que por sua vez era apenas uma situação ilustrativa. Um parênteses dentro de um parênteses, mas consegue traçar um esboço de uma quase universal condição de fragilidade do homem moderno:

Quão longe alguém pode ir, sem ser denunciado, por carregar o eterno menino debaixo do paletó-e-gravata de executivo? Um homem realmente sério, que se põe sob avaliação rigorosa todos os dias, sabe que a qualquer momento sua irrelevância será denunciada. "És um blefe", ouvirá. Esboçar defesa diante dessa acusação é pior, confere ignorância filosófica ao sujeito. Tenho certeza que Drummond, ao se deparar com a tal sentença de blefador, estenderia as mãos para as algemas. Respiraria aliviado. "Ufa, pensei que vocês não chegariam."


posted by Manhaes at 11:15 AM
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quinta-feira, agosto 19, 2004

 

"Have you no sense of decency, sir?"

Eu ainda não falei por aqui de Michael Moore e George W. Bush, Jr., a dupla de antagonistas do maior embate demagógico dos últimos tempos. Também, faz sentido, ainda não vi "Tiros em Columbine" nem "Fahrenheit 9/11", nem li "Cara, Cadê Meu País?". Mas o MM está tão figurinha fácil na mídia que mesmo sem procurar você fica sabendo dele -- é que nem o último hit da Kelly Key ou do É O Tchan, mesmo que você não queira, você já ouviu na rua.

Ninguém sabe ao certo quais as intenções do MM. A gente sabe que ele é um demagogo por excelência, mas não qual o objetivo de sua demagogia: se é bem intencionadamente (yeah, right) conscientizar a população norte-americana e ajudar a despertá-la para sua realidade, ou se é jogar o mesmo jogo da figura de poder que ele antagoniza, para cair nas graças do povo e oportunamente se colocar como nova figura de poder. Ou talvez, ainda, não haja distinção alguma entre essas duas metas.

O que eu sei é que, bem intencionadamente ou não, o MM é uma figura extremamente perigosa, no pleno sentido dos "mascates da liberdade" descritos pelo Reich (não vou tentar sintetizar o conceito aqui; quem conhece concorde ou não, quem não conhece acredite na minha palavra ou ignore). O tom desse post fica mesmo semelhante ao do post anterior, inclusive no fato de que o Lula é outro bom exemplo de mascate da liberdade, primeiro aclamado como salvador, e depois gradualmente execrado pela mesma massa.

Mas não vou me aprofundar muito no mérito da atitude do MM; quero apenas apontar uma associação que eu percebi quanto a ele. Ela me parece crucial, e bastante óbvia, é bem provável que ela já tenha sido feita por aí e eu, desinformado, não tenha ficado sabendo. A questão é: lembram do já célebre discurso do MM no Oscar, pontuado com "What a shame, Mr. President!" (frase de efeito que parece meticulosamente lançada para virar palavra de ordem)? Ela é notícia velha, mas uma ruminação inconsciente qualquer ficou trabalhando e ontem me levou a perceber o que é que havia de familiar nela: ela é extremamente similar a outra frase célebre, "Have you no sense of decency, sir?".

Como ninguém aqui tem obrigação de saber história dos EUA (embora esse seja um daqueles episódios em que uma passagem da história norte-americana tem repercursões na história mundial), cabe aqui explicar. A década de 50 foi o ápice da temor anticomunista nos EUA, com a tendência desse povo à histeria coletiva sendo habilmente canalizada pelo Senador Joseph McCarthy na grande caça às bruxas que marcou o período, que ficou conhecido como "mccarthismo". De 50 a 54, o senador chefiou um comitê de invesitgações com o objetivo de expôr todos os comunistas "infiltrados" em qualquer órgão governamental, mas que também atacou civis, mais notadamente no cinema, com a criação de uma infame "Lista Negra" que condenou ao ostracismo centenas de escritores, cineastas, advogados, etc.. Notem que foi no embalo disso que o Reich dançou, tendo sido o único escritor na história americana a ter manuscritos originais queimados.

Em 54, McCarthy, na crista de sua onda inflamatória, decidiu voltar sua atenção para o exército americano. Em uma célebre sessão televisionada, McCarthy teve um embate com o conselheiro do exército Joseph Welsh. Tentando ganhar vantagem argumentativa sobre ele, McCarthy lançou mão de seu método habitual de difamar qualquer um que lhe fosse conveniente. O alvo era um auxiliar de escritório de Welsh queque sequer estava envolvido na investigação, mas havia sido membro de uma organização comunista anos antes. Após McCarthy expôr o rapaz, Welsh, exasperado, respondeu: "Let us not assassinate this man further, Senator, you've done enough. Have you no sense of decency, sir? At long last, have you left no sense of decency?".

Essa audiência marcou o início da queda de MCarthy, que meses depois foi condenado pelo Congresso por abuso de poder. Qualquer que fosse a agenda pessoal de Welsh, ele ficou prestigiado por confrontar o comitê e denunciar sua imoralidade. Pois bem, voltando ao MM, vejam como os dois cenários são iguais: um republicano demagogo na crista da onda da opinião pública, jogando com o medo da população americana para alimentar uma caça às bruxas de seus interesses, e no meio disso surge uma voz corajosa que ousa falar contra a imoralidade e falta de limites de sua agenda.

A frase de Welsh é um marco amplamente presente no imaginário e cultura americanos como um símbolo de heroísmo pela liberdade. A minha pergunta é: quão deliberadamente MM buscou parafraseá-la em seu discurso para aproveitar a similaridade de cenário e e se identificar com esse símbolo junto ao povo americano? "Have you no sense of decency, sir?" e "What a shame, Mr. President!", além do contexto, comparado acima, reparem como a forma e a idéia são as mesmas: uma interpelação emotiva, questionando respeitosamente uma figura de poder, levando a questão para uma esfera mais pessoal do senso íntimo de certo e errado, e na forma de um apelo que qualquer "joão ninguém" faria, de grande apelo e identificação junto ao povo. Mais do que uma mera exclamação de um ponto de vista, essa frase parece ser um minucioso trabalho de retórica, o que dá a MM uma posição totalmente diversa do "opinador sincero e isento" que ele conquistou junto à opinião pública.

Temos um embate entre dois demagogos, George Bush no poder e MM na oposição. É um erro pensar no MM como porta voz de algo diferente, quando ele "combate fogo com fogo", usando as armas do inimigo. Como eu disse no post anterior, muito mais perigoso é aquele que se mostra como porta-voz da liberdade mas na verdade veladamente manipula o povo para seus fins. MM se apresenta como santo isento, e a opinião pública compra esse peixe, sem se dar conta de que, muito mais profunda e habilmente do que George Bush, ele manipula e inflama sua percepção para fins próprios. Tendo tido o mérito de erguer sua voz contra Bush quando ninguém ousava fazê-lo, MM ganhou um status que confere validade e razão automáticas a tudo que diga -- uma posição de isenção extremamente perigosa, acima do bem e do mal, que ninguém deveria deter.

Para a referência histórica, uma busca por "have you no sense of decency" no Google gera vários resultados interessantes: a transcrição na íntegra da audiência McCarthy-Welsh; a transcrição e mp3 apenas dos minutos pertinentes à citação; e um artigo da CNN sobre o efeito social das audiências.

Como música do dia, a primeira vez que eu ouvi a frase de Welsh, "Exhuming McCarthy", do R.E.M.:

"You're beautiful more beautiful than me
You're honorable more honorable than me
Loyal to the Bank of America

It's a sign of the times, it's a sign of the times
You're sharpening stones, walking on coals
To improve your business acumen
Sharpening stones, walking on coals
To improve your business acumen

Vested interest, united ties
Landed gentry rationalize
Look who bought the myth
By jingo, buy America

Enemy sighted, enemy met
I'm addressing the realpolitik
Look who bought the myth
By jingo, buy America

'Let us not assassinate this man further Senator,
you've done enough. Have you no sense of decency, sir?
At long last, have you left no sense of decency?'


We're sharpening stones, walking on coals
To improve your business acumen.
Sharpening stones, walking on coals,
To improve your business acumen.

Enemy sighted, enemy met
I'm addressing the realpolitik
You've seen start and you've seen quit
(I'm addressing the table of content)
I always thought of you as quick
Exhuming McCarthy
(Meet me at the book burning)
Exhuming McCarthy
(Meet me at the book burning)"


* * *

Sem nenhuma relação, apenas aproveitando o embalo, confiram esse artigo no Blogger Knowledge pleiteando a necessidade de se escrever de uma maneira minimamente correta em blogs. É em inglês, mas sua relevância não é específica para esta ou aquela língua. Delicioso.


posted by Manhaes at 4:59 PM
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terça-feira, agosto 17, 2004

 

"Do you see what I see?
Truth is an offence
You silence for your confidence
Do you hear what I hear?
Doors are slamming shut
Limit your imagination, keep you where they must
Do you feel what I feel?
Bittering distress
Who decides what you express?
Do you take what I take?
Endurance is the word
Moving back instead of forward seems to me absurd

Doesn't matter what you see
Or into it what you read
You can do it your own way
If it's done just how I say

Independence limited
Freedom of choice is made for you my friend
Freedom of speech is words that they will bend
Freedom with their exception"


Metallica - "The Eye of the Beholder"


Está nauseante essa discussão sobre a reimplementação da censura no Brasil -- pois antes de mais nada, deixemos de lado a série de eufemismos ridículos usados e admitados que o que se está propondo é censura. Por mais que se tente atenuar e dourar a pílula com termos mornos, está se defendendo a censura, como sendo necessária para a manutenção da liberdade de expressão! "Não estamos defendendo qualquer forma de censura, estamos apenas defendendo a ética na notícia". Foi por essa tentativa de ocultar uma repressão sob um discurso liberalista que eu me lembrei dos versos acima, "você pode fazer como quiser / desde que seja da maneira que eu disser". Sim, é de uma contradição absurda, temos que olhar mais de perto pra tentar entender.

O discurso daqueles que estão defendendo alguma forma de regulação não é de que a liberdade de expressão seja nociva; eles são liberalistas que a defendem, mas acham que, para mantê-la, é preciso "monitorá-la" -- ou seja, limitá-la. Acho que estamos assistindo a mais um movimento de ação e reação, reforma e contra-reforma, que cronicamente impedem a humanidade de andar para frente. Uma força de oposição luta por determinadas metas, mas tão logo as alcança, ela mesma começa a miná-las e pervertê-las por dentro, tudo isso em nome delas! A tragédia maior nisso é que tal impulso reacionário não vem dos "adversários" assumidamente contra tais metas, mas dos próprios defensores dela! Como sempre, podemos nos referir às revoluções Francesa e Russa como exemplo, quem as transformou em totalitarismos opressores foram os próprios revolucionários, não os monarquistas derrubados.

Trazendo para terras brasileiras: nossos pais e avós penaram durante décadas sob o governo militar, e há apenas 20 anos que saímos dessa sombra. Então, toda uma oposição de esquerda (seja centro- ou extrema-) lutou arduamente para finalmente, ao longo da década de oitenta, gradativamente conquistar pequenas e grandes liberdades para o povo (variáveis e questionáveis, mas há de se admitir que muito maiores do que antes). Então, tão logo tais liberdades são conquistadas, não demora muito para que os "libertos" se angustiem com o fardo do relativo livre-arbítrio e comecem a ansear por uma figura paterna que os "oriente".

Podemos tomar como exemplo cotidiano filmes no cinema e televisão: quando eu era criança, era dito textualmente "censura x anos" na entrada do cinema e na televisão, antes de começar um filme. Em dado momento a mensagem desapareceu, em um efêmero reconhecimento de que os pais sabem melhor do que o governo em que idade os filhos estão aptos para assistir determinado material. Mas pouco tempo depois, a mensagem ressurgiu apenas atenuada, "Desaconselhável para menores de x anos". Durante vários anos ela foi de fato colocada apenas como um conselho para os pais: era direito deles seguí-lo ou não. Nos últimos tempos, porém, a mensagem permanece em sua forma atenuada, mas seu significado já se enrigeceu no original: nem que os pais queiram é permitido o acesso da criança. Nesse formato reacionário, ela é mais nociva do que a censura original, pois ostensivamente ela não é uma censura, então não há o que ser combatido nela.

Há alguns anos, um professor meu disse em aula algo mais ou menos assim (com umas pitadas minhas de Reich e Orwell no meio): toda revolução comandada por uma vanguarda da consciência está fadada a se tornar um estado de polícia. Tão logo eles conseguem alcançar suas metas revolucionárias, eles vêem a necessidade de proteger suas conquistas, e vão tomando medidas cada vez mais restritivas para isso, até que por fim se cria um regime muito mais totalitário e opressor do que o anterior -- ou seja, a ementa sai pior do que o soneto. Tal estado se distancia tanto de seus ideais originais que nada sob seu domínio é reprimido com tanta severidade quanto qualquer aparição de tais ideais. Bolchevique, alguém?

O termo chave do problema aí é o grifado "vanguarda da consciência". Por ele entende-se que dada revolução não é feita por toda a população (ou uma maioria significativa), mas sim por uma pequena elite intelectual que mobiliza (manipula seria mais correto) a grande massa inerte, que segue atrás aplaudindo e clamando palavras de ordem sem contudo saber sequer pelo que está clamando. Como em tal cenário essa massa permanece intrinsecamente inconsciente, na etapa seguinte da revolução ela não sabe, "tadinha", como proceder, então a vanguarda que a liderou, agora no poder, é obrigada a novamente orientá-la, assumindo o próprio papel paternalista que havia combatido. Daí eu deixo a pergunta retórica: de Diretas Já pra cá, as mudanças conquistadas no Brasil foram obtidas por uma massa consciente ou por uma vanguarda intelectual?

O buraco, porém, pode ser visto mais embaixo ainda, se perguntarmos por que tais líderes precisam recorrer às mesmas armas do inimigo? Ou seja, se eles são tão visceralmente contra totalitarismos e opressões, será que em nenhum momento desse processo eles percebem que estão caindo na mesma cilada e tentam outro roteiro? Essa é relativamente simples: inseridos em uma relação de opressor-oprimido, a sua luta se dá dentro de tal relação; eles não saem dela nem lutam pela sua quebra, mas apenas por sair do papel de oprimido. Uma vez libertos da opressão, e tendo agora que governar, eles prontamente partem para o único modelo que conhecem e têm como viável: opressor-oprimido. É essa dança das cadeiras que vemos ciclicamente ao longo da história, com grupos de poder apenas alternando o papel do momento, e uma "massa inerte" sendo ora aliciada, ora escurraçada, conforme a coonveniência da situação. Mudanças no meio, quando dissociadas de mudanças pessoais, são vãs, pois vão ser as mesmas pessoas estruturadas naquele mesmo modelo antigo que vão estar tentando mudar as coisas, logo só o que elas podem conseguir é "mais do mesmo" modelo antigo.

Voltando à questão em pauta: muito mais perigoso do que o político de direita que assumidamente defende medidas limitadoras é o político liberalista e populesco que veladamente, com meias-palavras bonitas para ofuscar o povo, limita muito mais as condições do povo, sem que esse sequer se dê conta. E não sei quanto a vocês, mas me doeu ver um antigo protagonista da Tropicália defendendo a criação de uma agência reguladora.

ADENDO POSTERIOR: O já indicado RTFM também tacou umas pedradas hábeis sobre o assunto ontem, com menos referência teórica e mais base prática.


posted by Manhaes at 12:48 PM
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sexta-feira, agosto 13, 2004

 

"Wir fahren auf der Autobahn"

Ano passado já havia rolado alguma especulação a esse respeito, e agora parece estar confirmado, Kraftwerk volta ao Brasil em Novembro, de acordo com o Segundo Caderno do Globo de hoje. Digo "parece" e "segundo" por aquela reticência quanto a confirmações de shows estrangeiros no Brasil, em particular no Rio, onde freqüentemente algum entrave acaba cancelando em cima da hora. Há alguns meses atrás eu agourei a vinda do Pet Shop Boys, espero que não seja o caso.

Tendo acordado e dado de cara com essa notícia no jornal, "com o bucho mais cheio comecei a pensar" e fui ouvir "Autobahn" -- claro -- enquanto me arrumava para começar o dia.

O legal é que em novembro completam-se exatos 30 anos do lançamento de Autobahn, o primeiro disco oficial da banda. Mesmo hoje ao ouví-lo, ainda se tem a sensação de se estar testemunhando o início de uma jornada, ao longo dos singelos 22 minutos de duração da música, à medida que eles vão meticulosamente inserindo elemento após elemento para criar o clima apropriado. Uma jornada exploratória por uma "auto-estrada" virgem, desbravando um novo mundo musical -- não há como evitar soar piegas comentando isso, esse é o senso de deslmbramento perante algo novo evocado por eles.

Há quem diga que é errado afirmar o Kraftwerk como "os pais da música eletrônica", mas tirando o erro de concordância de número, essa é uma afirmação justa. Sem sequer precisarmos entrar no mérito da produção musical em si, a afirmação já é válida pela importância que eles tiveram na criação de alguns dos equipamentos mais básicos da música eletrônica: assim como Hermeto Pascoal, eles souberam tirar música de objetos não musicais, usando por exemplo contadores Geiger como percursão, e tendo sido os responsáveis por trazer o vocoder (efeito tão corriqueiro atualmente, que originalmente fora usado para encriptar mensagens nazistas na 2a Guerra) para a música, e sido os criadores do sampler. Este último está para a música eletrônica como a guitarra elétrica para o rock, não dá para se pensar os respectivos estilos sem eles. Eu não estou encontrando agora nenhuma referência concreta para validar essas informações, por hora fiquem com a minha palavra quanto a isso.

De qualquer forma, o fato permanece que não há música eletrônica que não tenha suas raízes neles: como exemplo é só pensar que o "riff" de "Planet Rock" do Africa Bambaataa, uma das bandas precursoras do "funk" e das mais exaustivamente sampleadas nesse meio, era por sua vez sampleado de "Trans Europe Express" do Kraftwerk, ou seja, até a música mais "de negão" tem sua base nesses "arianos". Além das várias outras ousadias autorais e performáticas, como sair do palco no meio do show deixando a música programada rolando, com apenas seus manequins móveis no lugar -- algo que de lá pra cá se tornou trivial por performances semelhantes, mas que foi um ultraje revolucionário na época, uma desconstrução do próprio conceito de música e concerto.

Enfim, o show deles no Free Jazz de 98 foi maravilhoso, e nada indica que esse vá ser diferente.

* * *

Ok, não que os caras sejam perfeitos, consta que, após o show de 98, eles foram esticar na Bunker, que calhou de ter uma festa de hip-hop no dia. Chegando lá e se deparando com uma maioria de público negro, ao encontrarem uma das poucas brancas loiras presentes um deles disse algo do gênero "Finalmente uma pessoa bonita aqui, só tem preto feio nesse lugar!". É, feia essa, mas no efeito telefone-sem-fio a gente não sabe ao certo como nem o que realmente teria sido dito, e há uma certa contextalização cultural a ser feita. E na boa, se o Heidegger era nazista, e ainda assim é aclamado como um grande filósofo (eu tenho lá minhas dúvidas quanto a que pensamentos válidos podem vir de uma mente que concorde com o nazismo, mas enfim), então dá pra dar um desconto pra Hutter e sua turma, né?

* * *

As Autobahns, mais do que meras auto-estradas, são aquelas estradas da Alemanha e circanias feitas não de asfalto, mas de concreto, que permitem que Mercedes, BMWs e afins explorem seus motores mantendo suas velocidades médias de mais de 180km/h tranqüilamente. Esse símbolo escolhido pela banda é só um daqueles dados que claream um pouco o contexto que fez com que fosse na Alemanha em particular que tal estilo tenha surgido e florecido, se desdobrando no EBM, industrial, etc., com crias ilustres como o Einstuerzende Neubauten e seu "som de ferro velho."

* * *

Embora essa jornada musical não esteja concluída, pouco mais de 10 anos depois de seu início, em 86, eles esboçaram uma apanhado parcial na música "Technopop", descrevendo em que pé a coisa estava, e principalmente antecipando o que estava por vir no cenário musical:

"Synthetic electronic sounds
Industrial rhythms all around
Music non stop, technopop

La musica ideas portara
y siempre continuara
Sonido electronico
Decibel sintetico"


posted by Manhaes at 1:00 PM
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quarta-feira, agosto 11, 2004

 

"O que é um santo? Um santo é alguém que alcançou uma remota possibilidade humana. É impossível dizer o que seja tal possibilidade. Eu acho que ela tem algo a ver com a energia do amor. O contato com essa energia resulta no exercício de uma espécie de balanço no caos da existência. Um santo não dissolve o caos; se ele o fizesse, há muito que o mundo já teria mudado. Eu não acho que um santo dissolva o caos nem para si mesmo, pois há algo de bélico e arrogante na noção de um homem colocar o universo em ordem. Uma espécie de balanço é sua glória. Ele passeia pelas correntes como um ski desgovernado. Seu percurso é a carícia da colina. Sua trilha é um desenho da neve em um momento de seu arranjo peculiar com o vento e a rocha. Algo nele ama tanto o mundo que ele se entrega às leis da gravidade e do acaso. Longe de voar com os anjos, ele traça, com a fidelidade da agulha de um sismógrafo, o estado da sólida paisagem terrena. Sua casa é perigosa e finita, mas ele está em casa no mundo. Ele pode amar a forma dos seres humanos, as delicadas e intrincadas formas do coração. É bom ter entre nós tais homens, tais monstros balanceadores do amor."


[Trecho (mal traduzido por mim) de "Beautiful Losers" (1966) de Leonard Cohen. Fonte, e texto original, em Bird on a Wire, um fansite bem completo sobre o artista]

E como dizem que devemos aprender algo novo todo dia, hoje, em uma busca pela extensa discografia do Leonard Cohen, eu me deparei com o site acima aberto com o trecho citado, que por sua vez me levou a uma nova busca, e à descoberta de que ele também é escritor, ou ano menos foi, antes de iniciar sua carreira como músico. Um levantamento superficial indica que "Beautiful Losers" em particular foi bastante aclamado na época. Faz sentido: pelo (pouco) que eu conheço do estilo "pecador decadente" do cara, deve ter feito a alegria dos beatniks e dessa galera que só quer saber de Bukowski e Kerouac.

Pessoalmente, eu sou daquelas pessoas que, salvo um ou outro download aleatório de músicas dele, só conhecem "Waiting For the Miracle", "First We Take Manhattan" e "Everybody Knows" (essa última já citada há alguns meses por aqui)-- ou seja, só exemplos da produção dele nos anos 80, que agradam aos ouvidos desse período. Então, ao indicá-lo como merecedor de um conhecimento mais amplo e minucioso, e "denunciar" a falha de caráter de quem nem sabe quem é, primeiro eu admito a minha, por mal conhecê-lo. Tendo agora o álbum "I'm Your Man" de 88 em mãos (que contém duas das três referidas músicas), o negócio agora é buscar mais do material anterior dele, que uma ouvida por alto indica ser bastante diverso, para poder adjetivar e comentar com mais propriedade.

Por hora, só uma associação que não tinha me ocorrido comentar antes: recentemente, em dois posts distintos eu quis evocar um pouco do sempre necessário cinismo perante as coisas, um deles com a citação de "Everybody Knows" referida acima, e o outro recente com a citação de "I Was Wrong" do Sisters of Mercy, ou seja, Leonard Cohen e Andrew Eldritch, dois sujeitos ácidos que parecem sempre freqüentar aquela região apaixonada que oscila entre o sublime e o descrente. Ora, "Sisters of Mercy" também é o nome de uma música do primeiro disco do Cohen em 68, com a qual eu já tinha esbarrado, daí é fácil deduzir a influência de um sobre o outro (que já ficava aparente pelo estilo das letras),e natural que ambos apareçam próximos em assuntos desse gênero.

Tem também o Nick Cave, mas esse nem conta de tão evidente que é a influência, em um primeiro contato é quase impossível distingüir se uma dada música é dele ou do Leonard Cohen.

Por fim, tendo me deparado com esse trecho do livro dele citado acima, forçosamente acabou que eu retomei de leve o assunto dos "tolos santos" que eu abordei em dois posts consecutivos em março (em referência a "Jokerman" do Bob Dylan, "The Fool on the Hill" dos Beatles, e São Francisco de Assis) -- digo "abordei" mais do que "comentei", pois há assuntos nos quais nós temos que nos recolher à nossa insignificância e lembrar da sempre importante máxima de que "não devemos dizer menos do que já foi dito antes": o trecho acima fala mais e melhor do mesmo deslumbramento perante essas figuras que eu tentei expressar, então me calo quanto a esse assunto e faço minhas as palavras do Leonard Cohen, "É bom ter entre nós tais homens, tais monstros balanceadores do amor".


posted by Manhaes at 1:02 PM
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quarta-feira, agosto 04, 2004

 

Uma das diversas frases de efeitos lançadas pelo Tyler Durden em Fight Club, e uma das minhas favoritas, é "We work jobs we hate to buy things we don't need (...) The things you own end up owning you" ["Trabalhamos em empregos que detestamos para comprar coisas que não precisamos (...) As coisas que você possui acabam te possuindo"]. Como na maior parte do filme, o princípio expresso não é novo, o que é novo é a maneira de se reformular um conceito antigo -- eu me refiro a esse filme como "Nietzsche pop".

Deixando de lado conceituações filosóficas, essa frase tem um emprego muito concreto e cotidiano quanto às seduções de parcelamentos eternos com ou sem juros, que tornam tentador consumir muito mais do que realmente se pode. Se a gente der mole, parcela daqui, parcela dali, quando se dá conta está devendo até os rins em troca de uma série de bens que "precisar não precisa", supérfluos que a gente passa a entender como essenciais. E quanto mais supérfluos possuimos, e mais responsabilidades assumimos para poder tê-los, mais pesados e menos móveis ficamos.

Como faz tempo que eu não cito R.E.M., dá pra fechar com "The Finest Worksong" que também cabe aqui, "What we want, and what we need / has been confused, been confused".


posted by Manhaes at 2:34 PM
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terça-feira, agosto 03, 2004

 

E agora chega de galhofa, ainda que eventualmente inteligente, né? Tudo bem que uma pausa pra descontrair vez por outra é essencial, mas bate uma culpa de estar comentando animações engraçadinhas tendo esse desastre no Paraguai para falar. É que, ao mesmo tempo que isso foi um acontecimento que tem que ser comentado, ele é um daqueles casos tão afrontosos de sequer se imaginar que nos causam aquela reação de estupefação, de não ter nada pra dizer que não soe pequeno para a situação além de interjeições de choque ou de revolta.

Para além do horror, que não tem o que ser comentado, de mais de 300 pessoas morrendo queimadas trancadas em um prédio, eu fico pensando na história do dono do supermercado ter recebido voz de prisão imediatamente. Legal, correto, provavelmente aqui as autoridades sequer teriam a lucidez de fazer isso. Agora, o sujeito nem tava lá na hora, como ficam o mandante e o executor diretos da ordem de trancar as portas? Mesmo em tribunais de guerra é eticamente questionável o subalterno que se isenta da responsabilidade com um "eu só estava cumprindo ordens", e nesse caso em que tais isenções não se aplicam? O senso comum imediatamente foca apenas na figura de poder envolvida e ignora a responsabilidade dos demais. O que mais me choca nesse pensamento é a idéia de que, se a maioria que observa sequer se questiona se os funcionários tiveram responsabilidade por seus atos, então a maioria das pessoas faria a mesma coisa em uma situação semelhante...

É por isso que Hitler foi eleito ao poder com a promessa de que "ao povo seria dada a dádiva da ignorância", as pessoas não querem saber de responsabilidade pelos seus atos, entregando-a de bom grado para uma figura de poder dominante, e ao observar uma situação como a ocorrida, prontamente se identificam com os funcionários que abdicam de sua faculdade de arbítrio em prol de fazer cegamente o que for mandado.

Outro ponto menor que me chamou a atenção é como mesmo as agências de notícia mais respeitadas prontamente colocam de fora suas manguinhas de tablóide. Na notícia do Globo, por exemplo, eles apontam o detalhe de que vários corpos carbonizados foram encontrados abraçados, como o de uma mãe e sua filha pequena. Isso é algo consternante, sim, mas tal dado é estrategicamente jogado como para gerar essa consternação demagógica. Pense bem, qualquer pessoa em uma situação de perigo extremo vai abraçar um ente querido que esteja junto, ainda mais um percebido como indefeso (por mais que concretamente ambos estejam indefesos), para tentar ao mesmo tempo dar e receber alguma proteção, ainda que isso sirva apenas de amparo emocional frente a uma morte inevitável. Então, apontar esse dado não está informando nada da situação, está apenas usando uma reação afetiva humana universal para "jogar barato" com o leitor.

É quando a gente vai reparando nesses detalhes não menos importantes que passam despercebidos no meio de questões maiores que a gente vai se dando conta de como é difícil ter fé nas pessoas.


posted by Manhaes at 6:28 PM
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Como adendo tardio ao post anterior, faltou fazer uma recomendação de um site obrigatório para quem curte esses humores de internet: o madblast.com, similar ao albinoblacksheep só que maior, com sessões de humor diárias e outras coisas que não envolvem flash, para quem não tem banda larga (como eu, que só pego a aba no trabalho).

Mas, como eu já disse, eu não tenho paciência de ficar passeando pelos conteúdos, a indicação é na verdade de uma animação específica do repertório deles, que me mostraram já ano passado: If You're Trigger Happy. Ela já está meio fora do contexto original do frenezi da mídia na iminência da invasão do Iraque, mas ainda tá valendo, tanto pelo assunto ainda estar com seus desdobramentos, quanto pela animação ser muito boa. Na época pipocaram centenas de paródias em cima do tema "bomb iraq", a maioria (como sempre) sem sair do óbivo, e com animações no "melhor" estilo "qualquer um faz". Já esta é particularmente bem feita e bem sucedida na crítica, com um humor mordaz e esperto que falta na maioria. A musiquinha dela, que é claro fica ainda melhor quando ouvida e vista, segue assim:

If you cannot find Osama
Bomb Iraq!
If the markets are a drama
Bomb Iraq!
If the terrorists are frisky
Pakistan is looking shifty
North Korea is just too risky
Bomb Iraq!

If we have no allies with us
Bomb Iraq!
If you think someone has dissed us
bomb Iraq!
To tell hell with the inspectors
Let's look good for the elections
Close your mind and take directions
bomb Iraq!

It's "preemtive non-aggression"
Bomb Iraq!
Let's prevent this mass destruction
Bomb Iraq!
They got weapons we can't see
And that's good enough for me
Cuz it's all the proof I need
Bomb Iraq!"


posted by Manhaes at 4:35 PM
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segunda-feira, agosto 02, 2004

 

Tosqueiras de Internet

A internet veio como esse milagre da comunicação, permitindo que (supostamente) todos tenham acesso a (supostamente) qualquer informação, e que qualquer um tenha a oportunidade de divulgar seu trabalho. O problema prático disso, associado à facilidade de uso de editores de áudio e vídeo, é que confunde-se "qualquer um pode divulgar seu trabalho" com "qualquer um acha que sabe fazer alguma coisa". Daí que para cada cartunista, desenhista, fotógrafo, músico, animador ou escritor minimamente decente que se encontra na internet, encontram-se centenas de outros medíocres, quando não péssimos, o que faz com que os bons acabem ficando perdidos no meio dos outros. Quem tem paciência, por exemplo, de navegar pelas centenas de tiras de quadrinho online que têm por aí à procura da eventual tira que preste em meio a uma avalanche de tiras fracas ou lugar-comum? Eu pessoalmente nunca olhei mais de três ou quatro, mesmo sendo apreciador desse formato. Pior ainda então no caso de animações em flash, que numeram nos milhares,

O problema nesse "qualquer um faz", parece ser a frase ser tomada demasiado literalmente: sim, qualquer um pode fazer, mas fazer algo bom depende de "algo mais" do que um editor de vídeo. O clássico The Boy With Immovable Hair prova que a qualidade técnica é secundária à criatividade de quem a emprega (hilária, nesse exemplo), mas infelizmente esse princípio é tomado pela metade na maioria das vezes: se a qualidade técnica não é importante, logo deve ser só fazer qualquer porcaria e pronto, porque a "ruindade é maneira", ignorando o quesito criatividade, que distingüe a "ruindade maneira" da "ruindade ruim". O Rather Good que eu indico aqui é exemplo desse limiar, são umas animações ruins de doer, e sequer são inteligentes. Pensando bem, nem tem porque ser engraçado, mas por alguma qualidade dele, é!

Daí que, ao me deparar com algum bom site de humor, eu rio com gozo dobrado: rio pelo humor em si, e pelo contentamento de encontrar algum humor bem sacado no meio da abundância de humores reciclados. De alguma maneira, existem pessoas que têm a paciência suficiente (ou ócio demasiado) de fazer tais levantamentos e encontrá-los por nós, e é nelas que a gente confia para nos indicar os trabalhos seletos. Vão aqui então algumas indicações recebidas de tosqueiras que bem mandadas:

-Spamusement, "Poorly-drawn cartoons inspired by actual spam subject lines!" -- É um site recente, eu peguei indicado no RTFM. O sub-título já descreve adequadamente o que é: títulos de propagandas de spam interpretados em charges com toda cara de terem sido feitas em 30 segundos em um guardanapo, mas ainda assim com minúcias que dão conta de expressar os absurdos das interpretações. Vejam um exemplo da acidez do humor dele na interpretação do anúncio we have your medicine.

-Disturbing Auctions, um outro site mais antigo do autor do Spamusement, esse não é propriamente um site de "trabalhos", mas ainda cabe no assunto, pelos comentários absurdos que o cara faz sobre os produtos. Esse site apresenta uma ampla lista de itens esdrúxulos que foram encontrados à venda em sites de leilão de internet. A ressalva, que torna as coisas mais esdrúxulas, é que não são vendas falsas (hoaxes como um rim humano) nem zoadas (como uma air guitar), elas são supostamente genuínas, ou seja, o vendedor e às vezes até um comprador levou a sério a coisa. No "hall of fame" deles consta esse singelo gator bride, um crocodilo empalhado vestido de noiva, enquanto nos acessórios você encontra esse porta-moedas de sapo -- que chegou a ser comprado! -- ou essa bolsa de saco de boi, ambos deveras aprazíveis também.

Entre as diversas categorias, tem a "Terrifying Dolls" que, embora eu ache meio redundante, ilustra minha opinião de que o lugar de bonecas, em especial as de porcelana, é em filmes de terror. Reparem como em diversos deles rolam umas transições de cena com close em alguma boneca de porcelana no cenário, e quão creepy é a expressão dela. E não é por causa do contexto do filme, repare naquela desbotada boneca de estimação que a sua amiga insiste em guardar há mais de 20 anos e deixar decorando o quarto, como ela não dá um ar fúnebre ao ambiente. A red-eye doll, por exemplo, descrita como "causadora de pesadelos", não tem nada de esquisito, é uma boneca bem ordinária, mas não menos horripilante por causa disso. O big-hands baby então, nem se fala, parece criatura de filme B. E, na categoria "Brinquedos Emocionalmente Traumatizantes", a única coisa capaz de fazer frente ao terror de uma boneca de porcelana, o cymbal devil monkey (destaque para a foto de close up).

-E, last but not least, temos uma já bastante conhecida, a animação em flash The End of the World, vulgo "WTF" (what the fuck?), uma da animações mais hilárias que eu já vi, comentando sobre como o mundo deve acabar em uma troca de mísseis nucleares, com um narrador surtado de pronúncia hilária que faz merecer ser visto mais de uma vez para se pegar os detalhes resmungados. A coisa já começa na mensagem de now loading com um garrancho dizendo "long load, so STFU already!" (shut the fuck up), e só piora a partir daí.

Essa animação é hospedada no Albino Blacksheep, cheio de vídeos e animações de humor. Nem todos necessariamente bons, em alguns casos servindo de exemplo para a discussão acima, mas na média merecendo um passeio. Lá tem, por exemplo, infâmias como o Gollum Rap, a "cena do dicionário", o matrix ping-pong e o Super Mario Bros. 3 time attack (esse jogo imenso zerado em onze minutos), entre diversas outras.

* * *

E para manter o clima de hoje, to tosco ao grosseiro, Garotos Podres - "Mancha":

"A mancha no tapete parecia mingau
A mancha no tapete parecia mingau

Mas não era mingau, o que que era pessoal?

Era suco de cacete, era suco de pau!
Era suco de cacete, era suco de pau!"


posted by Manhaes at 11:19 AM
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