"O que é um santo? Um santo é alguém que alcançou uma remota possibilidade humana. É impossível dizer o que seja tal possibilidade. Eu acho que ela tem algo a ver com a energia do amor. O contato com essa energia resulta no exercício de uma espécie de balanço no caos da existência. Um santo não dissolve o caos; se ele o fizesse, há muito que o mundo já teria mudado. Eu não acho que um santo dissolva o caos nem para si mesmo, pois há algo de bélico e arrogante na noção de um homem colocar o universo em ordem. Uma espécie de balanço é sua glória. Ele passeia pelas correntes como um ski desgovernado. Seu percurso é a carícia da colina. Sua trilha é um desenho da neve em um momento de seu arranjo peculiar com o vento e a rocha. Algo nele ama tanto o mundo que ele se entrega às leis da gravidade e do acaso. Longe de voar com os anjos, ele traça, com a fidelidade da agulha de um sismógrafo, o estado da sólida paisagem terrena. Sua casa é perigosa e finita, mas ele está em casa no mundo. Ele pode amar a forma dos seres humanos, as delicadas e intrincadas formas do coração. É bom ter entre nós tais homens, tais monstros balanceadores do amor."
[Trecho (mal traduzido por mim) de "Beautiful Losers" (1966) de Leonard Cohen. Fonte, e texto original, em Bird on a Wire, um fansite bem completo sobre o artista]
E como dizem que devemos aprender algo novo todo dia, hoje, em uma busca pela extensa discografia do Leonard Cohen, eu me deparei com o site acima aberto com o trecho citado, que por sua vez me levou a uma nova busca, e à descoberta de que ele também é escritor, ou ano menos foi, antes de iniciar sua carreira como músico. Um levantamento superficial indica que "Beautiful Losers" em particular foi bastante aclamado na época. Faz sentido: pelo (pouco) que eu conheço do estilo "pecador decadente" do cara, deve ter feito a alegria dos beatniks e dessa galera que só quer saber de Bukowski e Kerouac.
Pessoalmente, eu sou daquelas pessoas que, salvo um ou outro download aleatório de músicas dele, só conhecem "Waiting For the Miracle", "First We Take Manhattan" e "Everybody Knows" (essa última já citada há alguns meses por aqui)-- ou seja, só exemplos da produção dele nos anos 80, que agradam aos ouvidos desse período. Então, ao indicá-lo como merecedor de um conhecimento mais amplo e minucioso, e "denunciar" a falha de caráter de quem nem sabe quem é, primeiro eu admito a minha, por mal conhecê-lo. Tendo agora o álbum "I'm Your Man" de 88 em mãos (que contém duas das três referidas músicas), o negócio agora é buscar mais do material anterior dele, que uma ouvida por alto indica ser bastante diverso, para poder adjetivar e comentar com mais propriedade.
Por hora, só uma associação que não tinha me ocorrido comentar antes: recentemente, em dois posts distintos eu quis evocar um pouco do sempre necessário cinismo perante as coisas, um deles com a citação de "Everybody Knows" referida acima, e o outro recente com a citação de "I Was Wrong" do Sisters of Mercy, ou seja, Leonard Cohen e Andrew Eldritch, dois sujeitos ácidos que parecem sempre freqüentar aquela região apaixonada que oscila entre o sublime e o descrente. Ora, "Sisters of Mercy" também é o nome de uma música do primeiro disco do Cohen em 68, com a qual eu já tinha esbarrado, daí é fácil deduzir a influência de um sobre o outro (que já ficava aparente pelo estilo das letras),e natural que ambos apareçam próximos em assuntos desse gênero.
Tem também o Nick Cave, mas esse nem conta de tão evidente que é a influência, em um primeiro contato é quase impossível distingüir se uma dada música é dele ou do Leonard Cohen.
Por fim, tendo me deparado com esse trecho do livro dele citado acima, forçosamente acabou que eu retomei de leve o assunto dos "tolos santos" que eu abordei em dois posts consecutivos em março (em referência a "Jokerman" do Bob Dylan, "The Fool on the Hill" dos Beatles, e São Francisco de Assis) -- digo "abordei" mais do que "comentei", pois há assuntos nos quais nós temos que nos recolher à nossa insignificância e lembrar da sempre importante máxima de que "não devemos dizer menos do que já foi dito antes": o trecho acima fala mais e melhor do mesmo deslumbramento perante essas figuras que eu tentei expressar, então me calo quanto a esse assunto e faço minhas as palavras do Leonard Cohen, "É bom ter entre nós tais homens, tais monstros balanceadores do amor".