O Joaquim Ferreira dos Santos entrou já faz algum tempo (minha noção inexistente de tempo me impede de chutar quantos meses, ou se já tem mais de um ano) com sua coluna no lugar da do falecido Mauro Rasi. Embora eu não soubesse, e na verdade ainda não saiba, quem é e de onde veio esse Joaquim, eu já tinha tomado o hábito de conferir essa metade superior da última página do Segundo Caderno do Globo para ler, além do finado, Daprieve, Xexéo, Bloch e Agamemnon -- porém passando longe da Rónai -- então fui ver qual era a desse recém-chegado.
Não lembro qual foi o assunto da primeira coluna dele que eu li (nem se foi a primeira dele), mas sei que, mais do que o assunto, o estilo de prosa dele me chamou muito a atenção. A escrita dele tem essa qualidade técnica que oscila naquele limite tênue entre o fluir poético e o truncado erudito. Mas na verdade não é erudição, ao menos não no sentido escolástico, é só impressão: ele brinca com com um linguajar prosaico e um atravancamento coloquial (não o nosso colóquio, o de outras praças e tempos) de expressões e interjeições que nos lembra de "Grandes Sertões: Veredas" -- e de fato, mais adiante nesse primeiro contato ele citava Guimarães Rosa.
(Não que eu tenha conseguido ler "Grandes Sertões": após um mês de leitura tortuosa e esforçada, eu me toquei que mal tinha chegado na página 20, então reconheci minha insuficiência e prontamente arreguei pra ele, admitindo estar diante de algo muito bom, mas ainda além da minha capacidade de desfrutar. Mas isso é literalmente só um parênteses.)
Pessoalmente, me agradou na escrita dele algo particularmente raro na mídia, um escritor sem medo de fazer períodos compostos longos, cheios de apostos e orações subordinadas, tirando nosso fôlego com suas voltas sem nunca nos perder nelas -- ou seja, mostrando habilidade técnica sem com isso alienar os leitores em um elitismo cultural. Esse estilo quebra com aquela máxima simplória da escrita de que se deve sempre optar por períodos curtos com poucas e breves orações, que nada mais é do que uma acomodada segurança para quem não tem nem quer ter intimidade com a escrita, dando um céu baixo para quem a segue. Óbvio, ocorre o efeito "quero ser assim quando crescer", além de uma certa legitimação ao ver alguém reconhecido fazendo isso. Se os leitores na maioria (de blog em particular) sofrem de déficit de atenção e não conseguem ler uma frase de mais de duas linhas, ou um texto de mais de dois parágrafos, isso é empobrecimento cultural deles, seria errado "baixar o nível" para conquistar ou manter sua assiduidade -- popularizar a escrita não quer dizer empobrecê-la nem rebaixá-la, não queremos uma população de analfabetos funcionais à guisa de literatos.
Mas eu me desviei, eu queria comentar sobre o belo exemplo que é a coluna de hoje desse autor. Tomando um tema como assunto, ele passeia por uma meia-dúzia de outros, indo e voltando com uma fluidez de bailarino, conseguindo sem aparente esforço pincelar sinteticamente a essência de cada um deles, de modo que ele consegue falar de vários assuntos ao mesmo tempo, contrabandeados sem embolação dentro do assunto proposto. O trecho a seguir, por exemplo, não tem em si nada a ver com o assunto da coluna, surge quase como um devaneio dentro de um comentário que por sua vez era apenas uma situação ilustrativa. Um parênteses dentro de um parênteses, mas consegue traçar um esboço de uma quase universal condição de fragilidade do homem moderno:
Quão longe alguém pode ir, sem ser denunciado, por carregar o eterno menino debaixo do paletó-e-gravata de executivo? Um homem realmente sério, que se põe sob avaliação rigorosa todos os dias, sabe que a qualquer momento sua irrelevância será denunciada. "És um blefe", ouvirá. Esboçar defesa diante dessa acusação é pior, confere ignorância filosófica ao sujeito. Tenho certeza que Drummond, ao se deparar com a tal sentença de blefador, estenderia as mãos para as algemas. Respiraria aliviado. "Ufa, pensei que vocês não chegariam."