Uma notícia na televisão essa semana anunciou o desenvolvimento de combustível eficaz a partir de óleo de mamona. Como assim, gente, essa notícia é nova? Essa talvez seja a notícia mais atrasada que eu já vi na vida! Há coisa de 15 anos atrás isso já havia sido anunciado na Superinteressante (embora minha noção de tempo seja péssima, eu parei de assinar a revista lá pra 92, então foi antes disso), e depois não se falou mais nisso.
Claro, um combustível eficaz, de produção barata e matéria-prima de custo desprezível -- uma planta que dá que nem praga em qualquer terreno baldio -- é claro que o mercado não vai aceitar isso. Além de mandar a hegemonia dos petro-dólares pro quinto dos infernos, um produto barato assim geraria uma queda dos preços que não interessa a nenhum dos 500 atravessadores envolvidos, inclusive o próprio governo. E não precisamos sequer entrar no mérito de magnatas árabes e norte-americanos: esse avanço tornaria desnecessária a própria Petrobrás, menina dos olhos de nosso país.
Há 15 anos atrás morreu o assunto, dificilmente agora será diferente. Se não der pra boicotar ou inviabilizar o projeto com algum trâmite legal, alguma indústria petro-química compra a patente pra engavetar e nunca mais se falar nisso, como já aconteceu com várias invenções que ameaçavam quebrar monopólios.
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Outra notícia, essa no jornal, falava do Sr. Fulano que conseguiu ser eleito para presidente da FIESP. O que me chamou de cara a atenção foi a notícia informar que ele era "de oposição, apoiado pelo governo Lula". Ok, eu sou um alienado e desinformado convicto, raramente tirando a cabeça do buraco para me informar do que está se passando, mas até eu vi algo de errado aí: oposição apoiada pelo governo, não tem uma ligeira idiossincrasia aí não???
Até daria pra se dizer que eles estão se referindo a forças de situação e oposição dentro da FIESP, mas o restante da matéria reforçava a idéia, com o PT comemorando ter conseguido, após x anos, ter colocado um candidato de oposição lá. Sim, o PT fez o esforço como oposição ao longo de todo esse tempo, mas conseguiu como situação, e parece não ter atentado para essa pequena mudança!
Não há nada de surpreendente nisso, já foi amplamente reparado e comentado como o PT se encontra na situação com atitudes de oposição. Algo deveras esquizofrênico, se você parar para pensar, e a analogia se reforça quando testemunhamos a "cisão egóica" do PT, que fica na guerra do "eu contra eu mesmo". Eu reparei nessa notícia mais como um follow up, um dado que nos diz que a ficha ainda não caiu para o PT de que eles são agora situação; não é à toa que cada vez mais esse governo se assemelha a uma galinha degolada.
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Outra, essa manchete de primeira página do Globo: "Vela, o esporte nacional". É fácil deduzir que eu sou uma daquelas pessoas que se revoltam com todo o efeito Pão & Circo que ocorre com Copa e Olimpíadas, mas desde moleque tendo convivido com isso, a gente aprende a acatar isso como uma circunstancial inevitabilidade social. Há também a revolta adicional de o Brasil como um todo (todo mesmo, governos, empresários e principalmente o povo) cagar totalmente para o apoio aos esportes pra subitamente, uns meses antes da Olimpíada, lembrar que eles existem. Daí, no melhor estilo "Deus dará" desse caráter oral coletivo que espera que tudo venha até si do nada, o povo torce pelas medalhas, pela "nossa" vitória. Não, quem vence ali é a meia dúzia de gatos pingados diretamente envolvidos, com pouco apoio e recursos. O país os ignora durante 3 anos e meio, se eles vencem é uma extrema cara de pau coletiva dizer que a vitória é do país: a vitória é deles, dos indivíduos das equipes.
Agora, eu fico pensando como os jornalistas, na primeira aula da faculdade de comunicação, devem receber o dogma "quem não tem cão, caça com gato: force a barra o máximo possível para se obter a manchete desejada. Quando não houver a notícia que você quer, invente-a".
Na boa, vela esporte nacional é um pouco demais, né? Se fosse judô, vôlei, corrida, até vai, agora, forçar a barra de que vela, um esporte de elite, praticado por uma minoria com seus barcos de milhares de reais, é o esporte nacional passou da conta, né? É de uma irrealidade festiva extrema essa alegação, mais pão e circo impossível: vamos lançar uma manchete bem emotiva e populesca, e foda-se que não faz o menor sentido, o que importa é que o povo comemore "o ouro é nosso!", sem saber sequer o que está comemorando. E o caso específico da vela é uma variação da questão acima, mas com o mesmo efeito: ao invés de pessoas que ralam sem recursos para conseguir treinar, temos pessoas que ralam com o próprio recurso, que como têm dinheiro se bancam por si só, da mesma forma não havendo mérito nacional algum aí.
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Dois encontros curiosos ontem em ônibus:
-Pela manhã, pegando o 570 para ir pro trabalho, no que eu entro no ônibus o motorista aponta na minha direção e diz algo do gênero "Sisters of Mercy, boa pra caramba essa banda!". Com o cérebro ainda meio anuviado de sono, não processei a informação, olhei para trás achando que ele estava falando alguma coisa com o fiscal na calçada, e como ele ficou me olhando eu tive que perguntar empaspalhadamente "Hã?", e só quando ele repetiu que eu entendi que ele estava apontando para minha camisa. Dei aquele sorriso de "a gente compartilha algo em comum", ainda meio empaspalhado pelos neurotransmissores preguiçosos, e passei pela roleta.
Nada demais, mas é sempre bacana quando a gente faz esses contatos fugidios por aí, uma quebra momentânea do anonimato cotidiano, um reconhecimento quase que marginal de que você e o outro subitamente são menos do que completos estranhos, vinculados por um gosto específico e relativamente raro. Ainda mais em uma fonte tão inusitada como um motorista de ônibus, em geral das últimas pessoas que se esperaria conhecer e gostar de SoM. Faz a gente andar por aí olhando curioso para as pessoas, se perguntando quantas e quais dentre elas não carregam esses pequenos "segredos" em comum.
-O outro foi menos inusitado. à noite, agora no 571, esbarrei mais uma vez com aquele sanfoneiro que todo mundo que circula com frequência de ônibus pela Zona Sul já deve ter visto. O cara toca muito bem -- ou ao menos me parece, usando a riqueza de sons do acordeon para levar simultaneamente batida, base e linha vocal de uma música -- mas pelo que eu já vi o repertório não foge muito do roteiro "Aquarela do Brasil", "La Bamba", medleys a lá Jive Bunny, e umas 2 ou 3 dos Beatles. Ou seja, só as águas seguras de rocks antigos e similares, para chover no molhado e tentar agradar gregos e troianos. Daí a surpresa, que não teve como não sorrir ao escutar, foi ele levar "I Will Survive", que não deixa de ser chover no molhado, mas ainda assim uma quebra bem contrastante na sequência. e muito bem levada, marcando batida, solos de teclado, vocal, um luxo! Embora eu nunca dê dinheiro na rua, ele me quebrou me fazendo sorrir, então era justo e eu tive que dar um trocado.
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Há alguns meses atrás, um médico/acupunturista bem veterano de profissão me disse algo que um professor havia lhe dito uma vez: "O que eu trato é ser humano; corpo e alma tudo junto. Corpo sem alma é cadáver, alma sem corpo é assombração". Essa frase merece ser emoldurada e distribuída por todos os lugares que trabalham, m qualquer abordagem, linha ou especificidade, com saúde. Eu achei simplesmente genial pela clareza de visão dela, de um pragmatismo quase bronco em sua simplicidade, mas de uma concisão que encerra em si um brilhantismo que desarma qualquer defesa de uma das parcialidades, seja misticismo ou organicismo. Uma pérola dessas é tão auto-suficiente que dispensa qualquer elaboração adicional: ela já diz tudo, qualquer complemento é mera legenda.
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Esses dias eu andei lembrando de "Alagados", e falar acima sobre a Olimpíada me lembrou novamente. Desde moleque em festinhas de criança eu sempre me empolgava cantando "alagados, tristão!", eu não tinha ainda a capacidade de saber do que a música falava, mas algum registro rudimentar me dizia que ela estava falando de algo importante; a força de sua letra e melodia é suficiente para transparecer mesmo onde ainda não há capacidade cognitiva formal para entendê-la, naquela aguçada mas inarticulada percepção que temos quando criança, e depois desaprendemos. Não sei precisar até que ponto, mas sem dúvida os versos "A arte de viver da fé / só não se sabe fé em quê" tiveram um impacto forte naquele moleque, certamente está naquele rol de músicas e influências que foram sendo involuntariamente escolhidos como parâmetros de enxergar o mundo. Daí, é uma experiência bastante frutífera quando se cruza esse registro rudimentar, que ficou guardado e empoeirado, com o entendimento intelectual de adulto. Você pára pra pensar nqueles versos, que durante tantos anos você cantou automaticamente, e em um grande momento de Eureka você percebe o que estava ali o tempo todo.
"Todo dia
O sol da manhã vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo quem já não queria
Palafitas, trapiches, farrapos
Filhos da mesma agonia
E a cidade
Que tem braços abertos num cartão-postal
Com os punhos fechados da vida real
Lhes nega oportunidades
Mostra a face dura do mal
Alagados, Trenchtown, Favela da Maré
A esperança não vem do mar
Nem das antenas de tevê
A arte é de viver da fé
Só não se sabe fé em quê"