Voltando ao artigo de Freud sobre Dostoievski, um pouco mais adiante Freud escreve sobre os traços sádicos de personalidade de Dostoievski, e ao apontar indícios disso faz um comentário curioso:
"...sua personalidade reteve traços sádicos em abundância, os quais se mostram em sua irritabilidade, em seu amor de atormentar e em sua intolerância (...) aparecendo também na manera pela qual, como autor, ele trata seus leitores." (grifo meu)
Não sei ao certo que maneira é essa à qual Freud se refere. Tirando a decepção já comentada (e não é a isso que Freud está se referindo nessa altura), não sofri maus tratos do autor ao ler "Crime e Castigo", pelo contrário, é uma leitura bastante prazeirosa e instigante. Mas à medida que fui avançando na leitura de "Os Irmãos Karamazov" (que é, afinal, o livro em discussão), acho que ficou claro a o que Freud está se referindo.
Já desde as primeiras páginas do livro nota-se uma certa falta de de ritmo, como que custando a pegar no tranco, em grande contraste com o outro livro, parecendo ser outro autor de estilo totalmente diverso. Longe de ser uma leitura envolvente, um page turner, esse é um daqueles livros que não dão vontade de se ler mais de 5 páginas por vez, e da próxima vez você precisa voltar umas 2 páginas para retomar o que está acontecendo. Ele começa um assunto, e como um aparte a ele escreve dois capítulos, para depois retomá-lo, apresenta uma situação fora de contexto e diz que há um outro ocorrido que a explicaria, mas não convém contar no momento, e por aí vai. Não é uma mera questão de não haver linearidade temporal, isso é dispensável, mas não há sequer linearidade temática ou lógica alguma, quando ele apresenta um assunto, e finalmente vai engatar nele, ele prontamente salta para outro, parecendo deliberadamente evitar que a história tenha um encaminhamento "legível". Tudo isso sendo o mais esmiuçado possível nos apartes mais triviais, e frugal e suscinto com qualquer coisa relativa à história em si. A imagem que vem ao ler o livro é daquelas cenas de filmes de ação nas quais motorista dirige um carro com um inimigo agarrado no teto, e vai acelerando e freiando, dando cavalos de pau e fazendo curvas fechadas, raspando em prédios e passando por matagais para tentar se livrar do outro, onde Dostoievski é o motorista e o leitor é o carona indesejado.
No próprio prólogo, no qual o autor discute sobre a relevância desse livro e de seu desdobramento em dois extensos tomos, ele questiona a relevância de qualquer pessoa ler o livro, meio que avisando os incautos, para a partir daí testar a determinação do leitor, escrevendo da maneira mais obtusa possível só de sacanagem, enquanto fica rindo da cara do leitor que tenta acompanhar o despejo de personagens e situações indefinidos na sua cabeça. Esse livro foi escrito quando Dostoievski já estava relativamente estabelecido e podia brincar como quisesse com a escrita, não precisando se preocupar com trivialidades como conquistar os leitores; pelo contrário, ele parece querer repudiá-los, "Você quer um livro? Então toma!".
O engraçado é que não é uma questão dele ser um escritor denso ou pesado, cujo estilo é esse mesmo, ame-o ou deixe-o; dá pra perceber que rola um empenho deliberado em se fazer assim propositalmente, acho que aí que estão os "maus-tratos" pelos quais ele é acusado por Freud.
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Semana passada eu vi "Kill Bill Vol.2", e como tanto tempo depois do Vol.1 e eu ainda não comentei, parece justo que eu comente o Vol.2 tanto tempo antes. Bem, antes da estréia oficial no Brasil, já que qualquer interessado que tenha banda larga ou ande na rua já baixou ou comprou pirata de camelô, Deus e o mundo já viram. Idéia de girico das distribuidoras adiar tanto o lançamento do filme, só fazem perder bilheteria e dar dinheiro pra pirataria, mas enfim.
Antes, uma recapitulada sumária sobre o "Vol.1": pessoas entusiasmadas clamaram que este era "o melhor filme do ano", histeria de massa típica, manipulada por mídia. Duplamente estúpido: você não tem como, em Maio, afirmar que qualquer filme seja o melhor do ano, e algumas dessas pessoas disseram isso antes de ver o filme, ou seja, uma opinião pré-definida, sem nenhum compromisso de julgamento real. De modo geral as pessoas têm reações polarizadas em relação ao Tarantino: ou ele é um medíocre diretor que apela pra extremos gráficos, ou um virtuoso e revolucionário artista que desconstrói a sétima arte e a eleva a patamares sem igual. É claro que os dois extremos têm uma partícula de verdade, mas estão errados.
É curioso ressaltar que algumas das pessoas que clamaram que "Kill Bill vol.1" seria o melhor filme do ano antes de vê-lo inverteram essa opinião após vê-lo, dizendo que era execrável e uma perda de tempo. Claro, com expectativas tão infladas e exageradas, não tinha como se satisfazerem, então mantiveram o exagero, só invertendo a polaridade. O Vol.1 é um filme "legal", "divertido", assim mesmo, sem grandes superlativos. O Tarantino é um cara genial no seu campo, ele entende da linguagem cinematográfica e sabe fazer malabarismos metalingüísticos como poucos, mas as pessoas não entenderam que "Kill Bill" é uma brincadeira, apesar de Tarantino ter deixado isso claro desde que começou a se falar sobre o filme. O filme nada mais é, e nada mais se propõe a ser, do que uma homenagem avacalhada a todos os clichês dos filmes de kung-fu, samurais e faroeste que o Tarantino se amarra, ou seja, não é para ser levado a sério. Daí que os intelectualóides e cinéfilos de plantão tenham saído putos, pois não entenderam a piada. O Tarantino é um cara foda, então até uma brincadeira descompromissada dele fica foda, mas ela permanece apenas isso, uma brincadeira descompromissada. Eu ri e me diverti à beça vendo o filme, apreciei bizarrices como duelos de samurai com trilha sonora de faroeste e amputações com chuveirinhos absurdos de sangue agüado, e tá tudo certo.
O único problema, a meu ver, que incomoda um pouco no Vol.1 e esgota a paciência no Vol.2 é a falta de limite. Tarantino provavelmente já tem lá o seu pézinho na onipotência, uma falta de castração que lhe desse limites, e a situação real em que passou a se encontrar corrobora e reforça isso. Ele é um dos roteiristas e diretores mais cobiçados em Hollywood, e como raramente lança algo, deixa o mercado ávido por qualquer trabalho seu. Isso o deixa na posição confortável de poder fazer o que quiser irrestritamente, não há estúdio ou produtor que não vá ceder a qualquer capricho dele. O resultado final disso, como disse um amigo meu, é que Kill Bill precisava desesperadamente de um co-diretor, alguém que desse um pé no chão pro Tarantino, para dizer "Menos, menos" pra ele. Faltou corte ali, tanto simbolicamente quanto concretamente, o corte da edição de cenas. Acho que rolou uma errada na dose, por exemplo nos papos furados: já que eles fizeram tanta graça em "Pulp Fiction", como o célebre diálogo do Royale with Cheese, vamos extendê-los de maneira absurda em Kill Bill, vamos deixar a Uma Thurman cinco minutos olhando pro dedão do pé, e por aí vai. Os dois filmes poderia ter, cada um, uma meia hora enxugada sem perda alguma: não se trataria de compactar o filme e apertar seu conteúdo em uma duração menor, seria simplesmente não esticar o conteúdo ao longo de uma duração desnecessária.
Embora o Vol.2 tenha alguns pontos fortes, eles são mais conceituais, o saldo total sai negativo, com as poucas cenas realmente interessantes não valendo o todo, por esse enfado que a inflação do filme gera. É interessante, por exemplo, como ele continua brincando com a meta-linguística e com as expectativas do público. Ele já havia avisado que o Vol.2 seria substancialmente diferente do primeiro: onde um seria sobre a exarcebação e banalização da violência, o outro não teria grandes cenas de ação. Mas ainda assim é engraçado reparar como em diversas cenas ele prepara todo o cenário e ambiente para mais uma longa cena de duelo só para, todas as vezes, encerrar a luta quase que antes mesmo dela ter começado, como que rindo das nossas caras e dizendo "não, não, enganei vocês, eu avisei que vocês não vieram aqui pra ver luta".
Bom, acho que o salto de Dostoievski para Tarantino fica bastante claro: ambos aparentam ter a mesma postura com seus respectivos leitores e espectadores! O mesmo mal-trato debochado, a mesma habilidade no manuseio técnico de seu canal para despistar e frustrar o público, o mesmo exagero onipotente do artista já estabelecido que diz que "aqui mando eu, cala a boca e leia/assista, se não gostar a porta é ali". É um salto bastante grande, correlacionar um clássico escritor existencialista russo do séc.XIX com um diretor de cinema Hollywoodiano espertalhão e pós-moderno, mas a sensação perante os dois é a mesma. Acho que isso só prova como o ser humano é muito menos variado do que se pensa em primeira instância. Plus ça change, plus c'est la même chose", afinal de contas, "The Song Remains the Same".
Continuando as similaridades entre eles: em uma carta de Freud em resposta a um correspondente seu que comentara sobre "Dostoievski e o Parricídio", Freud admite que
"Você tem razão em desconfiar de que, a despeito de toda minha admiração pela intensidade e preeminência de Dostoievski, de fato não gosto dele. Isso se deve a que minha paciência com as naturezas patológicas está exaurida na análise; na arte e na vida, não as tolero. Trata-se de traços de caráter que me são pessoais e não obrigam a outros."
É, realmente há bastante o que se comparar entre Dostoievski e Tarantino.